EPISÓDIO 3
Som dos metais no início da vinheta
VINHETA: IMPRENSA NEGRA NO BRASIL
Sobe som 🎶
Dilson: A história dos trabalhadores brasileiros é precedida por séculos de resistência ativa de negros e índios contra o colonialismo escravocrata branco. Devido ao racismo dos historiadores a serviço das classes dominantes, tais fatos não se incluem nos livros escolares. Aos negros e oprimidos cabe reformular a revisar nossa historiografia oficial, distorcida e alienada.
Rafael: O trecho lido é da Revista Tição, lançada em 1978 em Porto Alegre.
Sobe som 🎶
Rafael: Eu sou Rafael Cardoso e este é o terceiro episódio da série Imprensa Negra no Brasil, em comemoração aos 190 anos do Jornal O Mulato ou O Homem de Cor, primeiro periódico negro do país. Nos episódios anteriores, você já conheceu o jornal O Homem de Cor e a importância da imprensa negra; e o jornal Quilombo, liderado por Abdias Nascimento.
Sobe som 🎶
Akemi: Episódio 3 – Revista Tição: ontem e hoje
Sobe som 🎶
Dilson: A realidade é esta: o problema racial envolvido num contexto mais amplo. A educação é deficiente para toda a população. Só os ricos têm privilégios, porque os pobres, brancos ou negros, sofrem discriminações e recebem uma educação que só pretende manter o sistema tal como está.
Som de agogô 🎶
Jeanice Ramos: O nome da revista se deve ao fato de tição, é ser uma fagulha, uma faísca, um pedaço de carvão, na ponta uma centelha de fogo, ou seja, resistência, né? E tição também tem a ver com a cor, muitas pessoas tinham o apelido de Tição por serem negras, né? Então esses dois aspectos pesaram na contribuição do nome da revista Tição.
Sobe som 🎶
Rafael: Essa é a Jeanice Ramos, jornalista que participou da revista Tição na década de 1970. A publicação trazia artigos de jornalistas, sociólogos e professores, enfrentando a visão hegemônica da mídia comercial e também as perseguições da ditadura militar.
Som de agogô 🎶
Jeanice Ramos: A criação do Tição se deve a um grupo de jovens de jornalistas negros, um grupo de jovens, que queriam ter uma mídia alternativa à mídia oficial, à mídia convencional. Esse grupo de jornalistas se reuniu, Jeanice Ramos, Vera Dayse Barcelos, Jorge Freitas, Emílio Chagas, o sociólogo Edilson Labarro, o professor Oliveira Silveira e Valter Carneiro, esses são os nomes iniciais do Tição. Na época da ditadura, as pessoas ficavam no máximo em três pessoas, já vinha o policial e dizia: circulando, circulando. E o fato de se reunirem negros, era mais um agravante. Nós tínhamos o desejo, uma responsabilidade enquanto grupo, com a comunidade negra. Nós achávamos que devíamos retornar um pouco do conhecimento obtido na universidade para a comunidade negra.
Sobe som 🎶
Rafael: Retornar o conhecimento obtido na universidade para a comunidade negra. Muito antes das políticas de ação afirmativa, como as cotas, o público diferenciado moldava toda a produção jornalística do Tição.
Sobe som 🎶
Jeanice Ramos: Era incrível o número de pessoas que queria participar do Tição. As reuniões de pauta eram 50, 70 pessoas, eram assembleias, tu entende, eram plenárias, não era uma discussão de pauta entre jornalistas, era uma comunidade toda querendo participar. Então nós não podíamos chegar e dizer ‘vocês não vão participar’, todo mundo participava, todo mundo opinava, né.
Rafael: A ideia da revista era chegar a um público mais diversificado do que outras publicações negras da época, pois também queria dialogar com a sociedade brasileira de forma geral e recontar a história negra no Brasil. O objetivo foi explícito no editorial do primeiro número.
Sobe som 🎶
Dilson: TIÇÃO pretende falar com a comunidade negra não só de Porto Alegre, através de uma linguagem simples e buscando um trabalho de conscientização racial, social e cultural. Entendemos que a chamada questão negra não se esgota em si própria. Embora ela possua a sua especificidade, também faz parte de todo um conjunto de reivindicações sociais. A revista se propõe a discutir a participação do negro neste âmbito e sua história, geralmente mal contada e distorcida, como exemplo mais típico sendo o Quilombo dos Palmares. Achamos que é preciso retomar alguns segmentos negros que foram interrompidos desde quando o branco chegou na África até os dias de hoje quando o negro, além de estar socialmente ameaçado em sua própria sobrevivência, sofre ainda o racismo branco. TIÇÃO está disposta a levantar tais questões.
Sobe som 🎶
Jeanice Ramos: A importância de ter veículos próprios para a comunidade negra é que tem uma ótica negra da questão, toda a questão social, política, cultural, econômica, né? Nem sempre a mídia oficial retrata os fatos da comunidade negra como deveria ser, a gente sabe disso, né? Vide o caso do Beto, do Carrefour. Vide o caso da mãe de santo que foi assassinada. A visão que passam é que é uma coisa ocasional, quando na verdade o negro está com um alvo nas costas pra levar um tiro, né. A sociedade está impondo isso, principalmente o jovem está com um alvo nas costas. Então, nós temos que ter um veículo pra denunciar, pra ser um porta-voz das necessidades da comunidade negra, que são muitas e específicas, né? Existe todo um rol de necessidades específicas da comunidade negra e que não são atendidas pela mídia oficial.
Som de tilintar de sinos 🎶
Akemi: Relembrando os casos, João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos, foi espancado e morto por seguranças do supermercado Carrefour em Porto Alegre, no dia 20 de novembro de 2020. A ialorixá Mãe Bernadete Pacífico, líder do quilombo Pitanga dos Palmares, em Simões Filho, na região metropolitana de Salvador, foi executada com 12 tiros, dentro de casa, no dia 17 de agosto de 2023, aos 72 anos.
Sobe som 🎶
Rafael: Denúncias de racismo institucional são uma constante na mídia negra desde o princípio. Lembram do caso Lafuente, denunciado pelo jornal O Homem de Cor?
Jeanice Ramos: A mídia negra dá condições para a comunidade negra se aproprie dos seus próprios problemas, consiga visualizar e consiga superar esses desafios que são inerentes aos negros e às negras, né? São problemas específicos, sociais, de questões básicas de sobrevivência, nós estamos em nível da sobrevivência, e isso aí é uma coisa que não podemos deixar acontecer, tu entende? Nós temos que superar isso aí, nós somos eminentemente pobres e como pobres temos que lutar diariamente pelo pão, pela condução, pelo trabalho, por todas essas problemáticas inerentes à vida humana. Nós não superamos isso ainda, não temos uma vida fácil, não temos qualidade de vida, nós não temos o viver bem. Está faltando isso pra comunidade negra, o viver bem, viver bem em sociedade, viver bem em comunidade, viver bem no seu núcleo familiar. Quando um negro adolescente sai de casa, a mãe fica em pânico, em pânico. Será que essa criança volta pra casa? Essa é a nossa realidade. E eles não voltam.
Rafael: A motivação e a história são de muita luta. Assim como foram grandes as dificuldades enfrentadas pelo grupo à frente do projeto. Como podemos ver neste editorial, da segunda edição da revista, publicada apenas em agosto de 1979, mais de um ano após a primeira.
Sobe som 🎶
Dilson: Desde março de 78, quando saiu o primeiro número da revista, a ideia era procurar conservar a periodicidade que fosse capaz de marcar a presença da Tição entre a comunidade negra e leitores em geral, mas já o número 1 foi razão suficiente para o desnorteamento de uma próxima edição. E o que se viu foram os mesmos problemas de qualquer pequena publicação, ou seja, de distribuição, circulação e vendas diretas. Até agora isto tudo ainda não foi solucionado. Mesmo assim o número 2 consegue avançar em definições e posicionamentos com relação ao anterior.
Rafael: Janice explica que o principal problema do Tição foi a distribuição dos exemplares. Podemos dizer que influenciada, também, pelo racismo estrutural.
Som de agogô 🎶
Jeanice Ramos: O nosso calcanhar de Aquiles foi a distribuição, porque na época só tinha uma distribuidora que cobrava caríssimo a distribuição. E nós nos propusemos a pegar a revista botar embaixo do braço e levar nas bancas. Foi a coisa mais caótica que podia ter acontecido, porque as bancas não preservavam lugar de destaque pra revista, eles botavam lá embaixo, nos pacotes de jornais de outras entidades, outras publicações, então o Tição não aparecia. A gente voltava na banca, conversava com o dono, na hora ele botava pra cima, daqui a pouco já botava pra baixo. Então grande calcanhar de Aquiles foi a distribuição.
Sobe som 🎶
Rafael: Claro que o financiamento da produção da revista também foi difícil.
Jeanice Ramos: Fazer foi um parto também, nós não tínhamos dinheiro, fizemos uma exposição de gravuras, de gravuristas, fizemos um show de música negra do sul, principalmente na época tinha o Café Som e Leite do Roxo, era um músico muito bem conceituado que sempre levava a gente. Fizemos um ciclo de cinema negro e trouxemos o Zózimo Bulbul. Quer dizer, a gente ativou várias outras áreas para conseguir chegar na parte da gráfica, pra pagar a gráfica.
Rafael: Também teve ameaças por parte do governo, na época.
Jeanice Ramos: Nós temos um episódio muito significativo. Nós fomos procurados por um polícia, se dizendo polícia militar, nos indagando sobre O Tição, nós fomos interrogadas, eu e a Vera Dayse. Na época ficou por isso mesmo, mas eu contatei o senador Pedro Simon e o senador Paulo Brossard, na época MDB, né? Para que não acontecesse da gente sumir, a gente tinha muito medo de sumir, porque a gente sabia que isso acontecia comumente e a gente tinha medo, né? Mas a penetração da revista foi muito boa, foi uma vitrine, né, a gente passou a ser reconhecido nas ruas, pelas pessoas. Foi muito bonito, sabe.
Sobe som 🎶
Rafael: Foram publicados apenas três números, sendo o terceiro em formato de jornal tabloide, em 1980. Com tudo isso, olhando em retrospectiva, Jeanice tem boas lembranças daquele momento e afirma que Tição fez história. Para o movimento negro e para o Brasil.
Jeanice Ramos: Mesmo com todas as dificuldades, a gente atingiu um bom número, foi bem impactante em Porto Alegre, por exemplo, a posição da revista, nós conseguimos uma boa divulgação, os meios de comunicação falaram de nós, nos destacaram, alguns números chegaram ao resto do país, Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia. E do exterior, Espanha, Suécia, Estados Unidos. A gente recebeu cartas desses lugares falando da revista. A revista teve seu aspecto positivo, né? Ela alcançou a comunidade negra como um todo, em Porto Alegre principalmente. Aqui no Sul tínhamos vários clubes negros, o Floresta Aurora, o Prontidão, o Nós os Democratas, e nós íamos lá fazer a divulgação. Na época, as pessoas não podiam entrar de jeans nesses clubes, tinha que entrar de calça de tecido e sapato de bico fino. E nós chegávamos de jeans e tênis, era uma sensação, parecia assim que a gente era um ovni, né? Nós éramos super bem recebidos, bem ovacionados e tudo, era uma coisa muito linda de se ver. Encerrou porque é um ciclo, um ciclo, então ela completou um ciclo, as duas revistas e o jornal completaram um ciclo.
Sobe som🎶
Rafael: O jornalista e pesquisador Júlio Menezes Silva, do Ipeafro, o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros, destaca a importância histórica do Tição e do movimento negro do Rio Grande do Sul.
Som de agogô 🎶
Júlio Menezes: Ela vem lá do Rio Grande do Sul. É o Rio Grande do Sul, por exemplo, tem uma tradição, né, de movimento negro historicamente. Você tem, por exemplo, hoje atuante o Nação Z que é um jornal interessante lá do nosso Juarez Ribeiro, um cara que é militante do movimento negro de anos, né? Um cara que é uma grande referência é um Rio Grande do Sul historicamente tem essa tradição né, de trazer sempre veículos importantes, né? O Ticão, ele diz que é existência e resistência, né? Ele tá nessa trilha da imprensa negra, que são muitos né? São diversos veículos negros que você tem se você tem como referência.
Sobe som🎶
Rafael: Passados 45 anos, Tição prepara uma edição comemorativa para resgatar debates do passado e repensá-los a luz dos problemas atuais.
Jeanice Ramos: Basicamente são 4 pessoas que estão fazendo a Tição novamente: Emílio Chagas, Jeanice Ramos, Edilson Labarro, Jonas Lopes. A ideia é do Emílio, né, de refazer a revista com um toque de contemporaneidade e resgate das pautas, para ver exatamente o que aconteceu, o que que cresceu, o que que diminuiu, o que que é verdadeiro ainda, o que que virou passado, né. São constatações que a gente quer fazer. Seria uma revista, teria uma publicação, assim, de comemoração de aniversário e a gente pretende fazer essa revista. Ela está praticamente pronta, as matérias estão prontas, são matérias atemporais, né, que a gente reuniu de pessoas da comunidade de Porto Alegre, jornalistas, sociólogos, professoras, técnicos, que estão dando a sua opinião sobre cada pauta que nós elaboramos. Então, na verdade, a gente não tem dinheiro pra fazer a revista. A gente está tentando projetos para botar a revista na rua, mas a gente vai botar, ela está pronta praticamente.
Sobe som🎶
Rafael: A solução financeira para a publicação comemorativa ainda não foi encontrada. Mas Janice acredita que a importância do tema vai mobilizar as pessoas em torno da revista. O projeto pretende confrontar os diferentes contextos e analisar em que pontos houve avanços ou retrocessos nos desafios enfrentados pela população negra no país
Jeanice Ramos: Se tu observares as pautas do Tição, até hoje elas são novas, elas falam sobre questões até hoje não resolvidas dentro da negritude. Empregada doméstica, jogador de futebol, político, a história do Rio Grande do Sul, como os lanceiros negros, mal resolvida até hoje. Então, todos esses tópicos foram aprofundados na revista e se tu pegares os exemplares eles estão super atualíssimos, são problemas contemporâneos hoje, né. Então, nós tivemos grande dificuldade de fazer a revista, demoramos pra editar, e quando editamos, editamos uma coisa que tem peso até hoje.
Sobe som🎶
Rafael: Um exemplo disso está na manchete de capa da segunda edição: Democracia racial: lenta, gradual, relativa. Segue válida até hoje.
Som de tilintar de sinos 🎶
Akemi: Uma referência à abertura política da ditadura militar, iniciada em 1974, que faria uma transição lenta, gradual e segura para o regime democrático. Tão lenta que só terminou em 1988, com a promulgação da Constituição Federal.
Sobe som 🎶
Rafael: A trajetória da revista Tição está em exposição em Porto Alegre, no Museu da Comunicação Hipólito José da Costa, depois de passar pelo Museu da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Tição: Existência e Resistência pode ser vista até o dia 27 de janeiro de 2024, com entrada gratuita.
Sobe som 🎶
CRÉDITOS
Akemi: Esse foi o terceiro episódio do podcast Imprensa Negra no Brasil, produzido pela Radioagência Nacional. A produção, apuração e narração são de Rafael Cardoso, que também assina três reportagens especiais para a Agência Brasil, sobre os 190 anos da Imprensa Negra no Brasil.
Sobe som 🎶
Rafael: A adaptação, roteiro e montagem são de Akemi Nitahara. Ela também participou da locução das explicações
A coordenação de processos e edição são de Beatriz Arcoverde e Pollyane Marques
A locução dos textos históricos foi feita por Dilson Santa Fé
Gravação de Tony Godoy e equipe da EBC
Identidade sonora e sonoplastia de Jailton Sodré.
Liliane Farias e Raíssa Saraiva são responsáveis pela estratégia de publicação e distribuição nas redes sociais
A identidade visual e design foram feitos por Caroline Ramos
Implementação na Web: Beatriz Arcoverde e Lincoln Araújo
Interpretação em Libras: Claudia Jacob
Montagem da versão em vídeo: Felipe Leite e Fernando Miranda
Rafael: No próximo episódio de Imprensa Negra no Brasil, apresentamos uma iniciativa ancestral e inovadora ao mesmo tempo: a TV Quilombo, feita por jovens do Quilombo Rampa, em Vargem Grande, no Maranhão. Continue nos acompanhando aqui na Radioagência Nacional ou pelas plataformas de áudio. Também disponível com interpretação de Libras no YouTube.
Sobe som 🎶
Fonte: Fonte: Agência Brasil